Acidente dos Sonhos

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BARBOSA SILVA

Ao Chegar a casa, um ex-tripulante Operacional (fiel) abre a internet em busca de um relatório divulgado recentemente sobre o trágico acidente de helicóptero que mudara sua vida e de todos os seus amigos. Ainda com muito pesar, doía quando ele se lembrava dos bons acontecimentos da época em que Operava equipamentos especiais.

Com as mãos trêmulas ele segurava o mouse e ainda sentia na boca o amargo das palavras que usou para informar à esposa e aos filhos de um amigo que um acidente o levara para sempre. Na ocasião ele evitou entrar em detalhes sobre o que motivou o fatídico caso, pois sabia da importância de manter o heroísmo do marido e pai morto. E assim seria, pelo menos até saber as razões concretas daquele acidente.

Digitou CENIPA no site de pesquisa. Na primeira opção de resposta surgiu o sítio desse órgão que é o responsável por elaborar relatórios de acidentes aeronáuticos. Clicou no link de Relatórios finais e encontrou aquele que queria começando, assim, sua fúnebre leitura. Foi então que percebeu que as famílias envolvidas nunca poderiam saber da verdade do acidente, a menos que fosse contada pelos verdadeiros responsáveis por ele sendo isso uma forma de punição para eles, pois sentiriam um sabor de castigo ao virem os rostos daqueles que perderam seus entes amados em um acidente que poderia ter sido evitado.

O Relatório, muito formal, iniciou-se com a apresentação do órgão responsável, seguido de um emblema, mais formal ainda, da cor azul celeste. Deve ser referência ao céu – pensou ele. As palavras “O Homem o Meio e a Máquina” ornavam o brasão que ser mais militar, era impossível.

Enquanto rolava a página para baixo, sua mente imbricava sequências de imagens em flashes. As cenas pausadas eram de risos. Ele sabia que eram das piadas e estórias contadas em momento de distração do serviço, geralmente, nas manhãs que precediam o trabalho. Percebeu, nesse instante, que involuntariamente inclinava a cabeça para sentir o cheiro bom do café que era feito pela funcionária da limpeza do hangar.

A próxima página do documento era uma advertência clara e Legal de que aquele seu conteúdo tinha, tão somente, a finalidade de prevenir acidentes e nunca de punir alguém. Mas ele sabia que não deveria ser assim, pois sempre existiam culpados. Sabia também que ele poderia ser um desses culpados. Sua consciência como se fosse uma terceira pessoa falou – Se acalme a pior punição já aconteceu.

Um índice era o conteúdo seguinte. A página era um retrato claro da alta técnica utilizada ali e uma demonstração do esmerilhamento que os anos e as várias tragédias deram à forma de elaboração daquele tipo de texto. O cabeçalho de cada lauda continha algumas letras que lhe identificava e tinha, também, aquela data dolorosa que ele costumava afastar da mente com um chacoalhar de cabeça toda vez que se lembrava.

Seguindo a leitura, viu a Sinopse do documento curta, grossa e assombrosa; igual a um acidente:

O presente relatório Final refere-se ao acidente envolvendo a aeronave PC-XX XXX em 05NOV2014, Tipificado como falha de motor, falha de Crew Resource Management – CRM e falta de cultura de aviação no hangar. Durante muito tempo algumas atitudes como abastecimento impróprio devido falta de equipamentos, interesses pessoais por poder e brigas de egos e displicência da gestão do estado fizeram com que uma guarnição composta por dois pilotos sem boas (ou nenhuma) relações interpessoais e um tripulante insatisfeito ficasse sem motor em voo. As ações erradas e reiteradas por vários anos, a despeito de serem reportadas de várias maneiras a quem de direito, era contumaz naquelas operações. A aeronave caiu sobre a floresta.

Todos os tripulantes faleceram.

A aeronave teve danos irreversíveis.

O leitor se impressionou com a frieza das palavras técnicas. A vida de três pessoas resumidas à dez linhas de um texto seco de sentimentos – Lamentou.

Seguiu com a leitura sinistra.

Um glossário de abreviaturas veio e ele seguiu sem dar atenção aos termos técnicos. Logo em seguida vieram as descrições da aeronave como tipo, peso etc. Um ano depois ele ainda se lembrava de todas aquelas referências, perfeitamente. Rolou mais uma vez a página e, pronto, chegou ao ponto que deixava o ex-Tripulante ansioso.

Tópico 1.2 – Informações Factuais.

A aeronave decolou do Aeroporto da capital, (XXXX), com três pessoas a bordo com destino a um município para voos de fotografia. Nessa cidade foram realizados abastecimento com o apoio da equipe de solo.

Nessa hora incorreu ao nosso leitor um sentimento de culpa que trazia uma dor lancinante no peito. Mas sabia que não poderia ter feito muita coisa pra evitar a não ser espernear em reuniões.

– Se bem que eu poderia ter sido mais firme e rasgado lonas como um amigo fez, certa feita, para evitar de usá-la com o jeitinho brasileiro correndo risco de contaminar o combustível que iria carregar. Dessa forma ter sido mais assertivo. Talvez se eu tivesse convencido a todos de pararem de operar teria ajudado a resolver tudo. Afinal, eu sabia que aquele encanto de salvar e proteger vidas havia sumido faz tempo daquele centro de operações aéreas e que a politica e brigas por avanços pessoais era o que imperava. Percebeu-se comentando em voz alta para as paredes.
Continuou lendo o relatório nos pontos factuais.

A aeronave apresentou falha de motor e os procedimentos foram tomados, mas aeronave caiu na floresta amazônica.
Seguiu-se a leitura solitária.

Tópico 1.3 – Danos pessoas: Ilesos 00, Leve 00, grave 00, fatais 03.
Esse tópico arrancou a lágrima que não surgiam há algum tempo.

Tópico 1.4 – Danos a aeronaves: Irreversíveis.

Tópico 1.5 – Outros danos: Não houve.

Nesse ponto ele soltou um sorriso irônico de dor enquanto enxugava a lágrima. E pensou: outros danos? Que tal três viúvas, e filhos sem pai?

O ex-operador saltou alguns tópicos que julgou sem importância e na sequência leu aspectos operacionais, pois sabia que ali estava a resposta da dúvida que tinha, que era saber se o relatório seria fiel aos acontecimentos.

O texto era muito técnico e ele conseguiu depreender dele que a aeronave havia feito duas pernas anteriores na qual numa delas o filtro de combustível teria sido substituído. A tripulação era ciente de que as condições de abastecimento eram comprometedoras. O que de fato causou um apagamento do motor por contaminação com água. Como a aeronave tem apenas um motor a queda foi quase certa diante da não resposta aos procedimentos feitos pelos pilotos.

Nessa hora ele parou a leitura olhou por sobre a tela e colocou-se num momento de divagação, lembrando-se das reuniões nas quais muito se conversava e nada se resolvia. “Reunião é o maior atraso de uma empresa” – lembrou-se de uma matéria da Revista Super-interessante que entre muitos defeitos das “reuniões” dizia que elas deixam as pessoas burras e que 70% dessas conversas entre funcionários e chefe não resolvem nada se não forem sabiamente planejadas. Pesquisas científicas mostraram isso porque simplesmente não procuraram se informar? Na internet, por exemplo, teriam encontrado informações e aprendido, evitando muito aborrecimento e, talvez, algo teria sido feito. Perguntou-se retoricamente.

Ele sabia muito mais do que estava no texto. Imaginou que muita coisa foi tirada daquele instrumento de investigação, pois fugia da parte técnica do relatório e também por que seria difícil de provar.

Era impossível provar egos inflados às custas do andamento do hangar. Seria impossível provar dissimulações, seria impossível provar falta de relatórios de voos por pressões externas, seria impossível provar maledicências desprezíveis, seria impossível provar as ações políticas que impossibilitavam a vinda de recursos para se comprar material. Seria impossível provar a vontade de ser o que quer a qualquer custo dizendo que não quer ser. Seria impossível provar que se abandonava posto de serviço à noite, seria impossível provar que se passava de semanas sem ir ao hangar quando deveria ir todo dia. Seria impossível provar à população que o helicóptero deixava de voar por que estava em período eleitoral.

A tristeza maior para o Top era que todos cometiam isso. Todos, cada um com sua responsabilidade.

Nosso ex-aeronauta, enganado por si mesmo, não sabia que tudo isso era, sim, possível de ser provado. Mas ele estava com a visão turva devido ao sentimento da perda.

Voltando a leitura, ele foi lendo superficialmente os tópicos saltando alguns – Informações da Aeronave – Comunicações – Aspectos médicos da tripulação – Análises – e Conclusões. Ele já tinha as dele e em nada diminuíam a dor.

Ao concluir sua leitura ele se deparou com sua esposa chegando e indagando o motivo de tanta tristeza, pois um ano já se passou daquele acidente. Ele se sentindo impotente diante da verdade e da culpa que tinha que admitir a sua parceira, sentiu um mal estar e percebeu a visão escurecer das extremidades ao centro do olho e caiu.

Como se em fração de segundos, acordou, mas isso só na impressão dele.

Ao retomar a consciência, ouviu ao fundo o som de aparelhos médicos e vozes ecoando em corredores compridos, sentiu um cheiro de esterilização por cloro e álcool no ar, então percebeu uma dor de cabeça e notou um ferimento. Passou a mão sobre a testa e sentiu vários pontos. Ao ver a esposa numa cadeira ao lado do leito do hospital em que estava perguntou:

– o que aconteceu comigo?

A esposa animada por ver o marido despertar de um sono profundo responde:

– Recebi uma ligação algumas horas depois de você ter ido para o serviço.

O tripulante estava confuso com as lembranças do relatório final e não lembrava de mais nada antes ou depois daquela lúgubre leitura. Pediu que a mulher continuasse a conversa.

Calmamente ela respondeu:

– Seu companheiro de serviço me ligou e informou que você tinha sofrido um acidente. Perguntei logo se o helicóptero tinha caído, ele riu. Fiquei com muita raiva. Ao perceber isso ele logo falou que não, e disse ter sido apenas o portão do hangar que estava quebrado e sem conserto há quase dois anos e que caiu sobre a sua cabeça quando foi abri-lo. Para me tranquilizar ele completou falando que afora o sono prolongado, junto de alguns pontos na testa, tudo iria ficar bem.

Nesse momento, nosso Tripulante Operacional começou a rir alegremente e abraçou a parceira que não entendeu nada. Após isso ele só agradeceu a Deus por aquele acidente ter sido apenas um sonho – o acidente dos seus sonhos.

E obstinou-se a fazer de tudo para que aquilo nunca acontecesse de verdade.


Autor: BARBOSA SILVA é Sargento da Policia Militar do Acre – CIOPAER/AC – Mecânico Auxiliar; Jornalista pela Universidade federal do Acre e Especialista em Tecnologia da Informação e Comunicação – UFAC

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