Quase 25% dos pilotos da aviação civil têm hábitos de risco no consumo de álcool

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Uma pesquisa encomendada pela Associação Brasileira de Pilotos da Aviação Civil (Abrapac) constatou que quase 25% dos pilotos da aviação regular brasileira apresentam hábitos de risco no consumo de bebidas alcoólicas, ou seja, com grandes chances de desenvolver dependência etílica. Obtido em detalhes com exclusividade pelo iG, o estudo será apresentado em sua totalidade pela primeira vez na IV Jornada Latino-Americana de Fatores Humanos e Segurança Operacional, a ser realizada em abril de 2015, em Brasília.

Elaborado com metodologia científica, com a participação direta de 1.235 pilotos, o estudo teve como base o uso do AUDIT (The Alcohol Use Disorders Identification Test – teste de identificação de desordem no uso de álcool), método criado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) composto por um questionário simples que visa a identificar os graus de uso de bebidas alcoólicas entre as pessoas. Para isso, ele traz dez perguntas de múltipla escolha com respostas de diferentes pesos, cuja somatória demonstra os hábitos em relação à bebida.

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“O resultado não me surpreendeu, pois vemos esse tipo de característica se tornando cada vez mais comum em ambientes de trabalho estressantes, com pessoas utilizando o álcool como válvula de escape para os problemas do dia a dia”, afirma a Dra. Elaine Cristina Marqueze, especialista em saúde ocupacional responsável pela pesquisa. “E o que mais há no cotidiano dos pilotos é esse estresse, pois eles sofrem com muita pressão, vida social quase inexistente, falta de tempo, grande demanda de trabalho. O álcool acaba sendo uma forma de se tentar ‘combater’ esses problemas.”

Parte de um estudo mais amplo batizado de “Fadiga Crônica, Condições de Trabalho e Saúde em Pilotos Brasileiros”, a pesquisa mostra que 75% dos profissionais da área consomem bebidas alcoólicas, sendo 23,5% taxados na categoria “uso de risco” e 1% enquadrados na de “uso nocivo”. Segundo o levantamento, 56% dos pilotos consomem álcool de duas a quatro vezes por mês, taxa considerada de baixo risco; enquanto 18,8%, entre duas e três vezes por semana, acima da ideal. Entre os questionados, 1,84% relataram a ingestão de bebidas em mais de quatro dias semanais.

O questionário produz o chamado escore (pontuação), de 0 a 40 pontos, dividido em quatro zonas. A primeira, de baixo risco, vai de 0 a 7 pontos; a segunda (uso de risco), de 8 a 15; a terceira (uso nocivo), de 16 a 19; e a quarta, a mais grave (possível dependência), de 20 a 40. Além da frequência, são também considerados pontos como número de doses ingeridas em cada ocasião e possíveis problemas ocasionados pelo consumo de álcool, como remorso, brigas, crises no relacionamento com a família e interferência na qualidade de trabalho. O estudo concluiu que são quatro os principais fatores que levam pilotos a abusarem do álcool: idade – jovens com até 38 anos têm risco 71% maior ao de profissionais de outras faixas etárias a se excederem no consumo; cansaço – pilotos com percepção de trabalho como muito exaustivo e com maior necessidade de recuperação tendem a ser 81% mais propícios a exageros; demanda – grande exigência de trabalho aumenta em mais de duas vezes o uso nocivo da bebida; e horário – pilotos com trabalho noturno inflam em quase três vezes as chances do uso etílico.

“Fica bem claro que é o trabalho e seus contratempos que levam ao abuso do álcool. Quando está tudo bem, a pessoa normalmente não exagera, não consome”, avalia Marqueze. “Existe claramente um ambiente que propicia esse hábito, um local inadequado de trabalho que estimula encontros para beber. O piloto, como qualquer trabalhador em situação semelhante, acaba sendo uma vítima disso tudo, afinal ninguém quer se prejudicar de livre e espontânea vontade. Existem situações que favorecem e levam a isso.”

Perigo no ar

Piloto há seis anos, Flávio (nome fictício) é bem ciente dessa realidade. Apesar de desconhecer casos de colegas com alto grau de dependência alcoólica, ele diz serem comuns os abusos entre profissionais da área, especialmente nas poucas horas disponíveis entre um traslado e outro. “É muito comum o voo aterrissar umas 23h, você embalar de beber até as 5h da manhã, dormir um pouco e depois ir pilotar outra aeronave às 11h”, conta ele. “Eu mesmo já saí chegando de pernoite, bebi cerveja até altas horas da madrugada e fui voar no dia seguinte.”

Mesmo sem a embriaguez escancarada, o hábito pode trazer problemas ao profissional no ato de seu ofício. Eliminar completamente o álcool ingerido do corpo pode levar muitas horas, principalmente quando consumido em doses muito altas. Além de efeitos como náuseas e sonolência, a ressaca ainda reduz a capacidade cognitiva e o nível de alerta do usuário.

“Você se sente mal, cansado, com a certeza de que não deveria ter saído na noite anterior. Bate até aquele arrependimento. Mas, na hora, já foi. É o seu trabalho, que tem de ser feito”, afirma Flávio. “É algo tão perigoso quanto dirigir um carro, mas transportando 200 pessoas lá atrás, o que eleva toda a tensão. Isso pode te levar a conclusões erradas, a reações demoradas, o que é absolutamente crítico em situações de emergência. Elas são raras, mas, quando ocorrem, representam o momento em que realmente precisam de nós totalmente alertas.”

Solteiro e sem filhos, Flávio corrobora com a pesquisa ao justificar o hábito, comum entre colegas, como consequência da própria carga de trabalho da categoria, acostumada a ganhar folgas apenas uma vez por semana, a receber escalas de trabalho sempre no início de cada mês – impedindo programações de médio ou longo prazo – e a voar a cada dia em horários diferentes. Uma total ausência de rotina, que afeta tanto físico quanto psicologicamente.

“As folgas costumam ser de acordo com o que as empresas definem e somente uma vez por mês se ganha a chamada ‘folga social’, que institui duas folgas seguidas, entre sexta-feira e segunda. No resto do mês, é tudo imposto. Assim, encontrar amigos e familiares, que trabalham em horários e dias normais, se torna impossível.”

Por tudo isso, a pesquisa tem como objetivo não só apresentar dados concretos às companhias aéreas para melhorar a qualidade de vida dos pilotos como mostrar a necessidade de reforçar a segurança tanto da categoria quanto de passageiros e tripulantes. “Precisamos mesmo é de ações públicas para obrigar as empresas a mudarem as condições de trabalho, aumentando o descanso entre as jornadas, mudando a periodicidade dos voos, diminuindo o tempo de traslados. Todos esses fatores estão diretamente ligados ao abuso de álcool e, consequentemente, a uma maior segurança nas aeronaves”, conclui Marqueze.

Fonte: Último Segundo

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