Relatório de Investigação de Acidente Aeronáutico os Processos Judiciais

O uso de relatórios finais de acidentes aeronáuticos com meio de prova judicial: "ser ou não ser"? Eis a questão, á luz da ciência do deve ser.

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A ocorrência aeronáutica é desdobrada, via de regra em duas grandes espécies: o acidente e o incidente aeronáutico. A primeira pode ser conceituada como a ocorrência aérea que possui intenção de voo, de tal sorte que poderá ter danos substanciais ou perda total da aeronave, bem como lesões graves ou fatalidades. A segunda, por sua vez, caracteriza-se por terem, além da intenção de voo, lesões leves e danos de pequena proporção à aeronave, mas ausência de óbitos. Sendo assim, a diferença básica entre ambas as ocorrências, indubitavelmente, são as consequências do evento.

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Muitos debates giram em torno do uso ou não de relatórios finais como forma probatória nos processos judiciais. Existem duas vertentes sobre o assunto. Uma que é favorável à utilização dos elementos contidos na investigação de acidentes aeronáuticos, em face dos dados colhidos e recolhidos, e dão suporte de compêndio no universo do sinistro. E a outra que é contrária ao uso das informações, oriundas da mesma, uma vez que a investigação do SIPAER (Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáutico) não tem como objetivo gerar punições, mas sim a capacidade da prevenção na segurança aérea.

Este artigo tem por escopo analisar dois casos concretos. Um, por intermédio do Relatório Final expedido pelo CENIPA que foi único subsídio probatório sustentado pelo Representante do Parquet – sobre o acidente aéreo envolvendo a aeronave marcas PP-EMT, acontecido em 04 de abril de 2005, operada pela Polícia Militar do Estado do Mato Grosso.

O outro evento, por sua vez, muito embora o Ministério Público Militar tenha utilizado o Relatório da ocorrência havida em 11 de dezembro de 2008, com a aeronave PR-YSJ, operada pela Polícia Militar do Estado do Pará, o Promotor de Justiça baseou-se também em outras provas, a fim de oferecer denúncia contra o comandante da aeronave.

O acidente aeronáutico é um acontecimento que requer algumas atitudes do Estado. O procedimento investigatório que começa com a realização de uma ação inicial no local do acidente aéreo, a qual é realizada pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos ou Serviço Regional de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, com a coleta de informações e confirmação de dados, nos termos do item 4.2.2 da Norma do Sistema do Comando da Aeronáutica (NSCA 3-13) (1). 

A formalização das informações colhidas será reduzida a termo, por intermédio do Registro de Ação Inicial (RAI). Em um segundo momento, os elementos de caráter preliminar da investigação serão formalizados pelo Reporte Preliminar (RP), de acordo com o item 1.5.45 da mesma norma citada.

A última etapa será o Relatório Final (RF) – documento formal destinado à divulgação oficial do SIPAER acerca da ocorrência aeronáutica, baseado nos elementos contidos na investigação. Eis o rito ordinário e investigatório de ocorrências aeronáuticas.

Qualquer acidente aeronáutico, sobretudo os que ocorram mortes e lesões corporais graves, terá repercussões no âmbito do Poder Judiciário. No evento havido em 2005, aconteceram três fatalidades, em corolário, foi instaurado o Inquérito Policial Militar (IPM), no qual se concluiu que não existiam elementos necessários para atribuir responsabilidades ao comandante da aeronave PP-EMT, o único sobrevivente da ocorrência. O fato teve sua gênese, em função de um acionamento, a fim de realizar uma missão de resgate às vítimas de acidente rodoviário.

Ocorre que o Ministério Público, valendo-se do Relatório Final, que foi publicado em 23/03/2009, interpretou que o mesmo possuía o cunho pericial e que tais informações contidas nele eram apropriadas como meio de prova dentro do bojo do processo. Sendo assim, o representante do Parquet utilizou única e exclusivamente as informações contidas naquele documento de prevenção de acidentes, com intuito de ofertar a denúncia em desfavor do tripulante como incurso nas penas contidas nos delitos de homicídio e dano culposos.

Ora, o direito preconiza que o magistrado ao prolatar uma sentença deverá valer-se do livre convencimento, mas que há de fazê-lo de forma motivada. E, mais ainda, o juiz deverá condenar ou absolver um réu baseado em um conjunto probatório, ou seja, mais de uma prova. Pergunta-se: como o magistrado fundamentará uma decisão pautada em hipóteses levantadas e contidas em um único instrumento?

Neste esteio, não se poderia afirmar que houve um julgamento errôneo do piloto quanto às condições meteorológicas adversas, mas, sim, poder-se-á depreender tal situação, pois não há certeza de tal assertiva. Além disso, não existem outros meios probatórios que possam respaldar a motivação do juízo.

No outro caso concreto, a Justiça Militar do Estado do Pará atuou acertadamente. Com base naquilo que foi apurado na fase pré-processual, em sede de IPM, sem levar em consideração o previsto no Relatório Final do CENIPA, os indícios de autoria e materialidade dos delitos, recebeu a peça vestibular. No que se refere à ocorrência do dia 10/12/2008, o comandante da aeronave PR-YSJ foi denunciado pelo Ministério Público Militar, em virtude das consequências oriundas de uma perseguição aérea a uma quadrilha de assaltantes.

Na peça inaugural, o Parquet concluiu que o indiciado infringiu o dever de cuidados no evento, o qual redundou na destruição do helicóptero (art. 264, inciso I, c/c art. 266 CPM) (2), o extravio de material bélico (art. 265 c/c art. 266 do CPM) todos pertencentes ao Estado. Além disso, causou lesões corporais leves (art. 210 do CPM) aos demais componentes da tripulação.

Logo, em ambas as ocorrências da Polícia Militar verifica-se o estrito cumprimento do dever legal, no âmbito de sua atuação. E os desdobramentos das ações redundaram em trabalhos produzidos pelo SIPAER, o Ministério Público Militar e do Poder Judiciário. Todos os entes cumprindo os seus deveres dispostos em lei. A grande reflexão que se faz é: utilizar o relatório final como modus probandi ou afastá-lo da órbita jurídica?

Se a resposta for positiva – Ser – negar-se-ia o preconizado no parágrafo segundo do art. 88-I da Lei n° 12.970/2014 (3), que assim dispõe: “A fonte de informações de que trata o inciso III do caput (dados de notificação voluntária de ocorrências) e as análises e conclusões da investigação SIPAER não serão utilizadas para fins probatórios nos processos judiciais e processos administrativos e somente serão fornecidos por requisição judicial……” Sendo assim, poder-se-ia imputar ou condenar, injustamente, um réu inocente ao cumprimento de pena, a título de culpabilidade.

Todavia, se a resposta for negativa – Não Ser – afirmar-se-ia o preconizado no dispositivo supramencionado. De tal sorte que foi louvável a atitude do Ministério Público Militar ao requisitar o desentranhamento do Relatório Final do CENIPA, dos autos dos IPM n° 2009.2000584-7 e 2009.2000532-6, os quais versavam acerca da autoria ou materialidade do possível cometimento de delitos, por parte do comandante da aeronave PR-YSJ. E mais louvável ainda foi a decisão interlocutória da Vara Única da Justiça Militar do Estado do Pará ao determinar a extração do aludido Relatório, tendo em vista que há outros meios probatórios que possam consubstanciar sua decisão.

O certo é que autoridades do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Judiciária, sempre que possível, requisitam os Relatórios Finais de Acidentes Aeronáuticos. E a grande pergunta que se faz: Ser ou Não Ser?  Eis a questão, à luz do que prevê a Lei n° 12.970/2014.

Autor: MÁRCIO PATRÍCIO DE OLIVEIRA, Especialista em Segurança de Voo e Aeronavegabilidade Continuada pelo ITA, Graduado em Direito e Pós-graduado em Direito Penal e Membro da Comissão de Direito Aeronáutico e Aeroportuário da OAB-DF

 

REFERÊNCIAS

1 BRASIL. Comando da Aeronáutica. Protocolos de Investigação de Ocorrências Aeronáuticas da Aviação Civil conduzida pelo Estado Brasileiro: NSCA 3-13. [Brasília-DF], 2017.

2 BRASIL Código Penal Militar. Decreto lei n° 1.001, de 21 de outubro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del1001.htm. Acesso em 17 jul 2019.

BRASIL. Lei nº 12.970, de 08 de maio de 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/Lei/L12970.htm. Acesso em 15 jul. 2019.

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