Homem de cera…

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ANDRÉ LUIZ PAES

Numa sexta feira assumi o serviço operacional, estava na reserva de voo, mas logo cedo (lá pelas 08:00h), chegou a notícia sobre a possibilidade de fazer uma operação de “misericórdia” – buscar o coração de uma vítima na Baixada Santista, a qual deveria ser trazida para São Paulo (Hospital Beneficência Portuguesa) – típica ocorrência de “transporte de órgãos”, a qual todos “gostam” de fazer… calma, deixe-me explicar.

anjoQuando refiro-me a “todos gostam’, quero dizer pilotos e tripulantes, no sentido de que por mais que uma vida tenha partido desta terra para um outro plano (não ousarei falar sobre fé ou crença), mesmo com a dor e perda daqueles próximos à pessoa que se foi, há a grande possibilidade de que um outro alguém – o receptor, normalmente desconhecido do doador (e nosso também), possa ter a chance de viver… e estamos tendo a honra, o privilégio de estar contribuindo com isso…

O tripulante aeromédico, compenetrado e de orelha colada ao telefone, fazia os contatos, colhendo dados técnicos quanto a parte médica… Enquanto coordenava as ações, o comandante de operações conferia a burocracia administrativa – notificação, contato com as seções, abastecimento. Enfim, tudo certo… teríamos de estar no Campo da Vila Belmiro por volta das 13:30h… às 12:45h, saindo de São Paulo, seria mais que o suficiente para chegar no local à tempo.

Às 08:35h recebo uma ligação do meu comandante imediato “- Velho, to parado aqui no trânsito da rotatória mas já to chegando… a viatura já está separada pra nós…” … lembrei-me novamente do evento administrativo… por mais que gostasse do serviço operacional, não tinha como “fugir” daquela reunião.

Além de ser piloto, sou responsável pelo setor de logística, com lutas constantes no serviço administrativo (além do voo), e com o egocentrismo a toda, filosofava com os bolsos do meu macacão de voo sobre um novo futuro para a Base… instalações atualizadas… melhoria de atendimento ao público interno e externo, novas salas etc e tal.

Já deixei combinado com a equipe de vôo, “- olha pessoal, esta reunião deve ter por volta de 2h de duração, ou seja, antes do meio dia estarei de volta e faremos a missão…”.

Às 09:20h adentramos a sala do Diretor de Finanças, eu, dois majores e uma soldado… o nosso Comandante já estava lá. A pontualidade militar por vezes é implacável, e a expectativa de uma possível cobrança de horário, deveras me incomodava (lembrei-me do já terrível “atrasador de reuniões”, o tráfego paulista… ah! Minha vontade era de trazê-lo escoltado e algemado até aquela sala e dizer em um tom estridente e trovejante: “Eis o culpado, senhor! (nada como a constante dúvida diária do trânsito de São Paulo para nos deixar sem saber quanto tempo se vai levar para fazer 03 km de distância… neste dia foram 25 minutos…).

O estresse caiu 50% quando pude observar uma “roda” de oficiais à mesa do Diretor… “- Ufa! Estamos no horário!”… o Comandante, calmo como sempre, nos cumprimentou e ficamos aguardando na ante-sala… aproveitei pra “virar o jogo”, como que cheio de razão e, olhei o relógio como quem diz “- e aí, quando essa reunião vai começar…”. Obviamente só pensei.

Às 10h a reunião começa. Sentamos à mesa de reuniões, o Diretor começa a conversar com o Comandante… meu celular vibra (garoto esperto!)… “- mas já me acharam aqui!?” pensei…

“- Alô, chefe… o horário mudou…” era o enfermeiro. “- … a gente sai daqui às 11h e já vai pegar o médico com o órgão (o coração) na Vila Belmiro…”. Com certo nó na garganta sussurei “- Ok, a reunião começou atrasada… vê outro piloto pra ir no meu lugar…”. Já fui de pronto respondido: “já foi providenciado outro piloto, … tks”. Oh, eficiência! pensei, pejorativamente.

Por um momento aquilo me incomodou um pouco… queria voar… fazer o quê?! mas, no minuto seguinte as planilhas de preço, memoriais descritivos e projetos executivos já inundavam minha cabeça, sem falar na previsão de recurso orçamentário…

Por volta do meio dia, reunião encerrada, retorno para a unidade. Ao descer da viatura, “dô” de cara com um policial do P/5 (relações públicas) que, com uma expressão meio “torta”, me diz com a voz amarrada “- Olha só que interessante, aquele coração que o Águia transportou de Santos pra cá era de um menino de 04 anos de idade… o tio dele, um Cabo PM fez contato com a gente e disse que o moleque era fissurado no Águia, e que tinha uma vontade imensa de voar de helicóptero… “.

Acho que a soldado nem percebeu… mas o chão sumiu dos meus pés em fração de segundos… sabe aquela história que a gente já ouviu sobre a vida passar na nossa frente momentos antes de “partirmos para outra”?… mais ou menos isso.

Num instante me senti uma partícula insignificante do universo… é de onde podemos perceber que nossas preocupações e questionamentos diários são nada! “- Será que vamos conseguir elaborar a planilha de custo em um mês?”, “- tenho que pagar o Inglês hoje!”, “tomara que minha filha tenha feito a lição de casa…”… o mais duro foi ter de enfrentar o meu próprio eu de novo… pois o pensamento, antes de me encontrar com a policial era “saber se eu conseguiria fazer um voo a tarde”.

Uma outra missão de misericórdia, ou o apoio na prisão de criminosos; um carro produto de ilícito localizado, um ferido atendido ou um VIP transportado… tudo se transforma em número… o trabalho diário nos faz, nos transforma em máquinas, e por vezes até mesmo numa profissão tão emocionante e apaixonante, a de “voar para servir”, no dia-a-dia pode nos transformar em algo tão vivo quanto um boneco de cera em exposição.

Deixo aqui a minha homenagem ao pequeno herói, que por desígnios que não me competem questionar, teve seu “sonho tão simples” atendido (de uma forma que não entendo, mas prometo que não vou questionar!) … um sonho, um desejo que todos nós, aeronavegantes, já tivemos um dia, no nosso coração de criança… e que por vezes, insistimos em esquecer de que fomos atendidos… ao pequeno sonhador, cujo desejo o Senhor resolveu atender (me esforço para não questionar) e o capacitou a voar sem precisar de máquinas, apenas asas, asas de anjo….


Autor: André Luiz Paes é Capitão da Polícia Militar de São Paulo e piloto de helicóptero. Trabalha atualmente no Grupamento de Radiopatrulha Aérea.


3 COMENTÁRIOS

  1. Lindo texto, capitão.
    Impossível questonar os desígnos da mãe natureza! É assim que “me explico” e me refiro, quando preciso/quero falar desse Senhor, que cada uma sabe que existe, de uma forma muito particular.

    Saudações!

  2. Bela mensagem para nossa reflexão diária sobre quem somos e para que viemos. Aquilo que chamamos de problema é insignificante diante da vida.

    • Sr Tc Cel Henrique, bom dia. Aprendi que todos recebemos uma cruz para carregar durante a vida. Deus dá a cada um a sua sabendo da capacidade de carregá-la até seu destino final. Aos defensores da sociedade(PM, BM, PC, GM, etc) cabe carregar não só a sua, mas também os reflexos das cruzes dos demais, principalmente nos momentos aos quais elas mais pesam sobre os ombros e tendem a levá-los ao chão. Assim, nos tornamos cada vez mais fortes, resistentes e resilientes para que no final de cada dia tenhamos cumprido a missão da melhor forma possível. Que a vida e os infortúnios não sejam motivos para o desânimo, mas sempre para o aprendizado e a valorização da mesma. Bons e seguros voos. Rtt. Tenente Tassinari

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